“Que a pele escura
não seja escudo para os covardes,
Que habitam na senzala do silêncio.
Por que nascer negro é consequência
Ser é Consciência”
Sérgio Vaz
Em 1978, foi instituído o dia 20 de novembro como o Dia da Consciência Negra. A princípio, parece uma data estranha. Afinal, não foi em 13 de maio que foi assinada a famosa Lei Áurea (pela abolição da escravidão) pela princesa Isabel? Correto, mas se devem levar em consideração alguns aspectos históricos.
Já está mais que esclarecido, por muitos historiadores, que a abolição não foi um simples ato de bondade da elite política imperial – ou da própria princesa – como quer nos fazer a historiografia oficial. É preciso deixar claro que, no processo abolicionista, não se deve omitir a própria luta do negro; esta que já se fazia presente desde a época colonial.
Houve participação ativa dos negros na Conjuração dos Alfaiates ou Inconfidência Baiana, em 1798, a qual teve como inspiração os ideários de liberdade estimulados pelo Iluminismo, pelo processo de Independência dos Estados Unidos (1776) e pela Revolução Francesa (1789).
A partir daí, várias revoltas de escravos – que contavam com certa participação de brancos libertários, de mulatos livres e negros alforriados – pipocaram no Brasil, o que as transformava em acontecimentos sociais extremamente perigosos aos interesses da elite. Apenas na Bahia, registram-se 11 motins de escravos de grandes proporções entre 1807 e 1835. Uma das revoltas mais famosas (pouquíssima comentada nos materiais didáticos e nas escolas) tornou-se conhecida como o Levante dos Maleses, em 1835. Maleses eram escravos de etnias haussá e nagô, majoritariamente mulçumanos, letrados e organizados em sociedades secretas. O Levante, é claro, foi violentamente reprimido.
Ainda durante o período Regencial, houve a Balaiada (1838-1841). Inicialmente, esta era composta apenas por trabalhadores pobres maranhenses que trabalhavam feito animais, viviam de migalhas e, ainda, assistiam à morte dos seus filhos devido à fome e tinham de ver suas filhas sendo estupradas por ricaços e seus amigos acompanhando dos soldados sem poderem reagir. Os pobres uniram-se em bandos armados que atacavam fazendas e casa de comerciantes ricos para sacarem produtos que seriam distribuídos entre as famílias desamparadas. Posteriormente, formaram exércitos guerrilheiros, tomaram Caxias – o maior centro comercial maranhense – e estenderam o movimento até Piauí, onde passaram a atuar junto aos escravos rebeldes. Esta adesão negra aterrorizava os latifundiários. Como sempre, os mais oprimidos foram esmagados pelas tropas dos liberais e conservadores – que se uniram contra o inimigo comum. Os negros não eram aceitos como prisioneiros: eram mortos aos se render. O único negro que foi preso, julgado sem advogado e enforcado: o preto Cosme, como era conhecido o Cosme Bento de Chagas, um excelente geral dos escravos rebeldes.
Após a Balaiada não houve mais nenhuma revolta (pelo menos de grande relevância) com a participação de negros. Em 1850, através de pressões inglesas, foi instituída a Lei Eusébio de Queirós, que punha fim ao trágico negreiro. Os motivos das pressões aplicadas pelos ingleses ao imperador brasileiro são discutidos até hoje pelos historiadores; hipóteses existem várias, mas que não vem ao caso no momento. A partir de 1870, começaram a serem votadas leis abolicionistas no parlamento, porque a Guerra do Paraguai havia assustado as elites e a grande incógnita era: como garantir a lealdade da população brasileira, se a sua maioria era composta de escravos? Nesta empreitada, o próprio imperador deu força para votar uma lei que desse início à abolição.
Em 1871, foi decretada a Lei Rio Branco, ironicamente conhecida como a Lei do Ventre Livre. O movimento abolicionista voltou em 1880, fazendo com que fosse criada, em 1885, a Lei Saraiva-Cotegipe. Com nome refinado, esta lei foi mais absurda ainda: o escravo se libertava aos 65 anos ou, caso fosse precipitado, poderia tornar-se livre aos 60 anos mediante trabalho não remunerado por três anos. Havia a lei, difícil é saber quantos escravos durariam (e não viveriam, porque eram considerados mercadorias) todo este tempo.
As leis foram insuficientes para conter as pressões abolicionistas, o número de fugas e rebeliões em massa se multiplicava e os grandes proprietários, além de não conseguirem conter a gigantesca revolta, temiam que, junto à libertação, os pobres exigissem a divisão de terras e riquezas. Diante do quadro, a monarquia tentou recuperar a popularidade aderindo às novas ideias. Aproveitando a viagem de D. Pedro II, pousou-se de boa samaritana a princesa e assinou a tão conhecida Lei Áurea, em 1888.
Agora, então, tudo em ordem: trabalho livre aos negros. Junto a esta ordem, a discriminação por preconceito de raça e cor. Assim, os negros não eram empregados. Mas, rapidamente, "em estado de emergência", tudo foi resolvido: em 3 de julho de 1951 era promulgada a Lei Afonso Arinos. Ela foi a primeira lei brasileira que transformou em contravenção penal a prática de atos resultantes de preconceito de raça ou de cor. A Constituição de 1946 fez apenas uma breve referência à proibição de propaganda de preconceitos de raça e classe.
Analisando todos estes fatos históricos, em nenhum momento foi citado o dia 20 de novembro. E isto foi propositadamente! Porque se já houvesse citado logo no terceiro parágrafo, no qual se iniciam as referências do negro como sujeito da história brasileira, estaria terminando o texto em quatro parágrafos. Estaria amputando a história do negro na participação e construção da sociedade brasileira. Assim sendo, não seria conscientização da importância do negro na história da sociedade brasileira, mas apenas a consequência da morte de um grande guerreiro negro nesta data, que antecede a Conjuração dos Alfaiates.
Este guerreiro negro foi morto por brancos ao ser encontrado em seu esconderijo, em 1695. Trata-se de Zumbi dos Palmares. Segundo a historiadora Ynaê Lopes dos Santos:
“Zumbi e Palmares não se separam um do outro. O quilombo – ‘sociedade guerreira’, que durou ao todo praticamente um século, constituiu um Estado negro dentro de um Estado escravagista brasileiro. Significou uma acabada negação da forma de colonização do Brasil, resistência concreta à servidão, desejo incontestável de emancipação dos escravos por seus próprios meios e, diferentemente do que sugeri a historiografia brasileira, uma prova que o negro jamais foi dócil à subjugação e sempre lutou para afirmar sua condição humana muitas vezes, como ali, de forma violenta. Zumbi, autêntico produto do quilombo, personifica esta luta mais o que qualquer outro personagem”.
Em 1580, ao mesmo tempo em que Portugal perdia sua autonomia política e era anexado à Espanha (formando a União Ibérica), quarenta escravos fugiam de uma fazenda no distrito de Porto Calvo, na capitania de Pernambuco, e se embrenharam nas matas. Nascia o quilombo de Palmares, o maior e mais duradouro quilombo de toda a América. A República de Palmares agrupou mais de 20 mil pessoas. Sua economia constituía, além da coleta, da caça e da pesca, da policultura (milho, feijão, mandioca e cana) – diferentemente do que ocorria no plantations da Zona da Mata nordestina. O artesanato era hábil e se faziam desde objetos de ferro até cachimbos de barro para fumar suas ervas africanas.
Em 1645, duas expedições armadas – uma a mando da União Ibérica e outra da Holanda – já haviam sido enviadas a Palmares com a finalidade de destruí-lo e, neste mesmo ano, num dos mocambos de Palmares que nasceu Zumbi, que foi capturado e dado ao padre Antônio Melo. Quinze anos depois, Zumbi foge para Palmares e, em 1672, seu nome aparece pela primeira vez na história por ter sido autor de uma inteligente tática militar que derrotou a segunda expedição de Jácome Bezerra. Em 1674, Ganga Zumba, rei de Palmares, foi acusado de traição e mataram-no por envenenamento e, com isso, Zumbi assumiu o poder, tornando-se o novo rei do quilombo. Em 1692, o governador enviou uma expedição comandada pelo paulista Jorge Velho, mas foi fracassada. Dois anos depois, Jorge Velho voltou e destruiu a capital de Palmares, Macaco. Em 1695, encontraram o líder num esconderijo e mataram-no.
Zumbi representa o negro altivo e rebelde, que resistiu à escravidão e lutou pela liberdade até a morte. O avesso dele foi o Pai João, escravo que aceita a sua condição sem pestanejar.
Os negros e seus descendentes jamais devem habitar na senzala do silêncio como o Pai João. Devem seguir os passos de Zumbi: exigir seus direitos constitucionais, principalmente através da Lei Afonso Arinos (1390/1951) que foi reafirmada na Constituição de 1988 e já completou meio século neste ano. Infelizmente, muitos ainda não têm conhecimento dela ou, quando têm, evitam entrar com processos pela burocracia do Poder Judiciário brasileiro ou por vergonha, caso em que deverão lutar contra a autodiscriminição.
Notas: (1) Artigo publicado originalmente no Jornal O Guaíra (impresso), em 21 de novembro de 2001. (2) As fontes bibliográficas foram exemplares da Revista Caros Amigos e fascículos da Coleção “Rebeldes Brasileiros” da mesma revista. (3) O autor possuía 18 anos e formação histórica marcante no pensamento socialista.
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